sábado, 24 de novembro de 2012

Voltando ao movimento das senzalas

O batuque do Paulo Eduardo Silva, do Maria Sol, no Sesc São Caetano nesta sexta já colocava naturalmente o corpo numa ginga ancestral. Mas a didática de Kiusam de Oliveira foi libertando nossos músculos, que inconscientemente ainda estavam cativos. Desde tempos imemoriais? O desafio era sair da postura eurocêntrica, a que nos ensinaram como ideal e experimentar os braços quase como asas, depois as pernas meio que na diagonal e os pés, estes reafirmando que sim, esta terra é mais do que nossa e esta é a corporeidade na qual ficamos praticamente "em casa", num cansaço bom de sentir ao fim da noite.
Entre rodas e trombadas, fomos construindo coletivamente uma gestualidade do grupo, sem certos ou errados, mas com identidade afro brasileira e mais genuína que nunca. Nada de por reparo na dança alheia, cada uma é legítima à sua maneira e vem se libertando como pode, como consegue, como dá. Às vezes em suaves prestações. Às vezes, no susto, de sopetão.
Foi simbólico na semana do orgulho negro, em que desconfio que minha predileção tenha mais a ver com uma quase birra "aborrescente" de alfinetar o pai com minha suposta preferência no âmago do racismo inconfesso dele, que tenha de repente me sentido tratada quanto as escravas da senzala pelos senhores da casa grande (claro que guardadas as devidas proporções, por elas terem teoricamente menos escolha), quando subitamente o cheiro que me eriçava tenha começado a chegar mais neutro no meu nariz. Ouço a professora dizer que tinha "quequê", um certo charme no balanço do quadril, dias depois de sentir que ele rebolava sim na aula de dança tribal, apesar de uma preparadora vocal ter me mandado "descabaçar" para um papel de prostituta três anos atrás.
Encerramos brincando com esta, que é a música original de uma brincadeira ligeiramente diferente na infância e descobrindo que foi adulterada para tornar o corpo mais contido e o negro mais subjugado: "guerreiros Nagô jogavam caxangá. Gira, salta, deixa Canjerê ficar. Guerreiros com guerreiros fazem zigue zigue zá" e o verso final era uma deixa e um acobertamento para a fuga.
P.S.: relevem os erros entendidos em afro assuntos de plantão, pois no Google não consta a grafia correta de nossa história, agora "contada de baixo".

quarta-feira, 21 de novembro de 2012

Depois de virar a própria escultura, eis que me vi dança

Esta está sendo a melhor entressafra da última década e meia: caminhada, capoeira angola, escultura, dramaturgia, bolero... Sabe quando é uma curtição ficar com você mesma? Uma espécie de sabático express, pois tudo que é bom, dura esquema fast food. E pensava que a delícia da aula de cerâmica seria a modelagem: cara, sou uma Barbie à paisana - fico com aflição das unhas secando e sujando, mas não espalha que pega mal entre os bicho grilo da comunidade... Curti mesmo foi pintar uma releitura de máscara que eu fiz (só sendo de minha autoria mesmo para pendurar na parede) e encher de cores minha mandala bastarda (nos estranhamos hoje, mas ela estava batizada, não pude negar). Mergulhei tanto no processo com o engobe colorido, o pincel e as peças em estado de couro que a professora quase teve que me resgatar do meu autismo criativo. Quem diria, a hiper ativa concentrada! Só as artes plásticas salvam!
E depois, fui descobrir qual era a da dança tribal. Ela me redimiu da humilhação anos antes de achar que tinha que nascer com novos quadris na dança do ventre. O que uma dançarina com didática não faz? Lembrei da minha contação de histórias do sagrado feminino, como estes movimentos cairiam bem ali. O grupo fez uma apresentação chamada Faces no teatro do Arquidiocesano três anos atrás (cáspita de Google, nada de vídeo ou fotos), com breve locução e danças homenageando Salomé, Joana D´Arc, Anita Garibaldi... Imagine que desbunde! Lembrei que na minha apresentação de Miseráveis no Teatro Ruth Escobar sofri horrores com a preparadora vocal mandando rebolar com uma delicadeza hitleriana, para descobrir dois anos depois nas preliminares do Processo, com o diretor porta estandarte do pós dramático que TODA MULHER REBOLA e que graças à nossa bacia, provavelmente preparada para parir, não conseguíamos andar neutro como um exercício propunha. Ah, vá!
Rebolei horrores uma hora inteirinha! E aquele braço meio em mudra, meio preparando vôo, que às vezes lembrava alça de vaso e noutras movimento de dança indiana? Espero dar tchau ao músculo do adeus. Contrai a barriga! E com o vestido impróprio que estava para a prática, que esvoaçava para lá e para cá, nunca me senti tão feminina! Louca para retomar meu trabalho quase autoral de contação. Mulherices. E nem estou naqueles dias! 
Falei para a profe que pode arrumar mais aula, ganhar uma grana e nos chamar para o open house da cobertura dela em pouco tempo marqueteirando o nome para dança feminista. Ou da femilindade. Oferecer em associações de mulheres. E viva o poder do sexo nada frágil!

sexta-feira, 16 de novembro de 2012

A Ruivice é um Estado de Espírito

Independente de Deus ter dado ou o cabeleireiro ter misturado. A alma é proporcionalmente ruiva conforme o quanto dói ser você mesma. Batalhar pelo que gosta pagar suas contas. Não abrir mão dos sonhos mesmo quando já se sente semi nova e com Deus e o mundo de plantão para te cobrar seguir o script que a sociedade exige à risca: carreira, filhos, estabilidade.
Depende do quanto você se atira no abismo. Das paixões. Sejam elas corporativas ou de pele. Com o quanto se arrisca. Quebrar a cara e ser puxada o tapete. Do quanto abraça. Causas e as pessoas. Do quanto se entrega à vertigem convulsiva. Com as crianças e os cachorros - de quatro e duas patas. Do quanto foge ao padrão. De roupa, casa, pensamento e linha de raciocínio.
Com o quanto se recusa. A aceitar o morno, o protocolar, o cinza e o tradicional. Com o quanto reinventa o clássico. Com o quanto personaliza o visual, o texto, a crença, o beijo. Com o quanto foge às regras. Do trabalho, na família, dentro do bairro, do que ri, na cozinha, com a mochila nas costas e refazendo os planos.
A imaginação é que dá o tom da ruivice, não a tom do seu cabelo no berço. A mudança dos planos. A capacidade de perceber o quanto ainda não sabe. E querer descobrir. A paixão por outras culturas. E tudo que é novo, diferente, visto por outro ângulo, pensado de outra maneira, desconstruído, remodelado, reinventado, estilizado.
A disputa de foice pelo que acredita. A capacidade de se por no lugar do outro. O quanto deixa encher os  olhos d´água. O sentir as borboletas dando rasantes no estômago. Como se fosse a primeira vez. O defeito de fábrica de acreditar nas pessoas. Como se ainda tivesse dentes de leite. A empolgação juvenil. O permitir  que os olhos brilhem. Uma infinidade de vezes.
Olhar para dentro de si. Com medo e uma curiosidade de pré escola. Respirar até a entrada e saída do ar se equilibrarem. Não saber como assentar seus próprios ventos internos, mas sem ter ideia como, acalmar os dos outros. Se doar. Como se ainda não tivesse se sentido sem chão. Botar fé como se ainda não tivessem esvaziado o suficiente aquela original de fábrica.
Se recusar a alisar os cachos. Esquecer do anti idade. Não deixar a alma envelhecer. Se apegar ao perfume que remete a quando foi feliz e não sabia. Preferir a contramão. Se cansar de nadar contra a correnteza, mas não conseguir a ir a favor da maré. Voltar a ser a criança que nunca deixou de canto e relegar a maldade aos olhos alheios.
Lembrar do creme, esquecer da unha. Recordar da maquiagem, relevar a depilação. Mergulhar em leave in, desconsiderar a moda. Gostar do óculos, esquecer o brinco. Curtir o chapéu, não fazer ideia de onde está a corrente. Ter anéis do teatro, pulseirinha com história para contar, mas... onde foi parar o presente que ganhou e amou?
Não saber fazer contas. Querer aprender tudo. Fugir da lógica do lugar comum. Precisar conhecer o mundo. Também ter ouvido de um anjo torto quando nasceu "vai, ser torta na vida". Ter uma fome que não passa. E uma febre que se recusa a ser medida por termômetros. Uma ânsia de sorver a vida em grandes goles. E ter medo. Que não dê tempo.

quarta-feira, 14 de novembro de 2012

Fim de Tarde

Na fase em que tudo é para sempre
Soltamos faíscas protegidas por sombras
num ensaio do deságue
Sua urgência dançava sustos no meu maior órgão
Mas sua ironia encontrou sarcasmo à altura
A convulsão que nos provocávamos
levou quase uma vida
para ousar se entrelaçar outra vez
O preconceito branco do teu lado
me doía com ralado no asfalto
O palco mergulhar nas tuas raízes
te magoava como criança ferida
Tua nostalgia da terra nunca conhecida
me arrancava pedaços
Mas só sabíamos sentir aos solavancos
E carimbar nosso desejo
em algodão ou sarja
Era sempre um soluço
esse alvoroço mal disfarçado de amor
Ter voado mais longe que o imaginado
Às vezes ainda revira
esse baú de fotos em sépia

Expulsa do Quase Paraíso

Na época em que aumentava virtualmente a família indígena Kaiowá, uma plaquinha artesanal barrava o retorno dela para casa com um "não passe" disfarçado em "inoperante" no ponto de ônibus. Justamente quando tantos reafirmavam online suas raízes guaranis, que nada mais eram que um apoio à legítima reivindicação deles pela terra, a casa onde mora deixa de ser dela. Um toque de recolher amplia o alcance do chefe do tráfico local ou da prepotência policial? De qualquer forma, como uma Guarani Kaiowá de pele clara, também é despejada para a beira da estrada, desta vez da Tancredo Neves e ali, como os índios impedidos de plantar nos acostamentos, não pode armar tenda. Seu pai colocou meia vida de trabalho na casa que chama de sua, mas já não sabe se ela é da PM, dos ladrões ou se serve de abrigo a motoristas que temem ônibus incendiados. Pode voltar para casa de uma amiga, mas a roupa dela em seu corpo atesta que só "saímos de casa quando ela já saiu de nós". Ensaia um cochilo num banco de terminal urbano, mas comprova precisar de condições ideais de temperatura e pressão, embora se sinta uma intrusa em seu próprio bairro: não dormiria naquela firmeza metálica pouco convidativa. Lamenta o amigo de categoria ambígua fora do país, pois agora teria uma justificativa e tanto para pedir guarida na "pombalândia" em que mora (o conjunto em que mora diminuiu sua grandeza perto de onde ele vive). O cansaço para encarar baldeações e combinações telefônicas com outras amigas leva à saída mais previsível: voltar ao metrô, mudar depois para o trem, mudar de cidade e pegar outro ônibus, desviando da maior favela de São Paulo. Aumentou a via-crúcis para casa, mas ao menos no município vizinho, a circulação não tinha sido suspensa. Finalmente encontrou uma vantagem de morar na divisa. Virou a revista do avesso para se irritar menos de precisar pegar "uma jangada, um cipó e uma balsa". Não se abalou quando um passageiro reconheceu na publicação que lia um personagem de "trash movie". E comendo letrinhas ávida, mal percebe os altos e baixos da calçada que nunca viu uma guerra, mas também nunca perdeu seus buracos. Chega mais tarde, cansada e fazendo torcida organizada para os traficantes, policiais, incendiadores de ônibus e motoristas suspenderem batalhas no dia seguinte.

terça-feira, 6 de novembro de 2012

Quando nós ainda...

- Era das coisas mais previsíveis que amava nele. Como ficar a madrugada inteira brincando de Autorama, fazendo de conta que ainda estávamos na infância. - disse o gordinho que falava bem.
O cigarro circulou pela roda de amigos sentados no chão da praça.
- Nela não, gostava do menos óbvio. Como quando ela fugia ao roteiro previsível e não se besuntava de creme e perfume e tinha o cheiro dela mesmo. - o fofo era fora do padrão, mas "magnetizava" a maioria dali.
Ela, até então atraída pelo menos clichê da turma, tomou um solavanco: pô, bi... Toda a humanidade era concorrente! Recusou a oferta do cigarro:
- Depois que encontrei a respiração sem falta de ar, faço exercício respiratório até na fila do banheiro!
O gordinho bi até esqueceu de tragar com a personalidade dela dançando em meio à unanimidade pelo relaxamento fácil. Não resistiu:
- É verdade que agiliza o orgasmo?
- Bom isso já não depende só de mim. A não ser que a companhia da noite seja o dedo.
A roda se dispersou em risadas. Inesperadamente ela se acolheu nele:
- Tem outra blusa?
- Mas o frio passou.
- Quem está circulando ar coletivo pré aquecido pra dentro são vocês, não eu.
O gordinho a abraçou.
- Fico querendo sentir de novo aquele primeiro barato, dos dezesseis anos. - agora o acelerado era o saudosista.
- Só que nem você é mais o mesmo, nem a erva. - analisa a sarcástica.
- Na minha primeira vez, minha paixão de infância prometeu que até nosso amor ganharia outras formas. - relembra a mais tímida - Mas nunca senti nada!.
- Quando traguei pela primeira vez, meu pai ainda morava conosco e não precisava agendar nossos reencontros.- soluça o grilado.
- Conheci a maconha e Caraíva juntos pela primeira vez. Nunca haverá praia como aquela. - suspirou o que já dançava como se ninguém estivesse vendo.
- Selei uma amizade de adolescência com um baseado.- recordou a mais brava - Só que não nos vimos mais!
- Quando quero criar mais livremente, preciso de um beque. - divide a irriquieta.
- Só sei esquecer os lugares que não voltei e as pessoas que partiram com vinho. - conta a das tiradas inesperadas, ainda abraçada ao gordinho.
- Gente daqui a pouco teremos que passar um lenço e apagar o cigarro. - conclui a pé no peito da turma.
- Pode ser que encontre um fumo como o da minha adolescência...
- Se reencontrar o primeiro amor, acreditarei nele como antes?
- Podendo reencontrar meu pai sem bloquear agenda, não terá mais a graça de antes.
- Caraíva deve ter parado no tempo como aquelas redes que balançavam nas varandas em slow motion...
- Aposto que minha amizade dos catorze anos continua a mesma.
- O que estimula é a cada novo cheiro, bater outro barato e inventar de um jeito diferente.
- Como todo mundo resolveu divagar pra uma direção diferente, podíamos sair de fininho. - tentou o gordinho com a das sacadas impagáveis.
- Com ou sem erva?
- De cara limpa que deve ser até melhor.
- Sem nem um vinhozinho?
- Quem sabe?
- Só temo de antemão quando o próximo te convidar para apostarem corrida de Ferrorama.
- Ah, aposto que na primeira ocasião que te surpreenderem você também voa longe. - ele despistou.
Ele tinha razão.
Topou.
Mas se encheu de creme no dia seguinte. Só para se diferenciar.

sexta-feira, 2 de novembro de 2012

Dor de amor corporativa


Sair de um trabalho apaixonante acarreta uma dor de amor similar a dos finais de relacionamento. Todas as lições budistas sobre desapego são esquecidas, como quando qualquer paixão nubla a visão da mais sensata das pessoas. Poder escrever mais livre, exercitar outras inteligências, tira os pés do chão de profissionais menos desavisados. Mergulha-se em queda livre, como quem se doa a um trabalho pela primeira vez. Mesmo na septuagésima experiência. O expediente é esticado sem lembrar de casa para arrumar, parentes para ver e projetos pessoais  pulsando atenção personalizada. Contorna-se problemas de estrutura com recursos próprios, esquecendo que adicionais por isso não foram previamente combinados.
O texto é escrito e editado à exaustão, em busca das melhores formas de se contar aquela história. Ralar além do combinado baixa a guarda, deixa escapar confissões, sem recordar que talvez o pé atrás fosse a melhor entrada em terreno novo. Os paus técnicos geram medo do prejuízo que a dedicação pode sofrer, sem saber que se a má vontade das operadoras campeãs de reclamações no Procon será levado em conta. Os detalhes do trabalho são compartilhados com amigos com empolgação quase infantil – que todo amor à primeira vista sofre de desvario adolescente, como quem publica um texto pela primeira vez e toda a experiência da última década e meia serve só para a produção, não contribui com lembranças das instabilidades do mercado.
As informações apuradas contribuem para o abençoado aprendizado indireto que só esta profissão proporciona. Lembra da tia que brinca que ela conversa de “colostro a física quântica”, de tanto que já entrevistou, redigiu, revisou, pesquisou, editou. Ama ouvir quem entende muito ou gosta demais de qualquer assunto, pois esses é que dão as melhores aulas, que rendem os textos mais encorpados, que ela também gosta de ensinar, ainda que seja com a palavra escrita. Quem tirava suas dúvidas era até interessante. Lembra da vizinha que sempre fica com alguém no trabalho, “que é uma vingança contra o capitalismo”. Não, ainda não é ativista tão radical assim.
Até passar vontade no bairro em que quase tudo é “incomprável” tinha seu lado divertido: erguia os óculos e fazia uns passeios com astigmatismo pelo local. Não captava os detalhes, ficava só com umas vagas lembranças de cores, formatos distorcidos, nada despertava tão fortemente impulsos de compra em quem está com planos maiores a longo prazo e precisa segurar o bolso para realizá-los. Mas admitia que era uma perua enrustida: tinha bom gosto, os rendimentos só não acompanhavam. Como se tudo isso não bastasse, se divertia no expediente, descobria coisas novas e pode - mesmo que mais rápido que gostaria - trabalhar com a máquina que todos qualificavam como a top de linha.
Cortar o apego que ela criou a esse lugar descolado em que inclusive trabalhou passando mal tem todos os tons de um drama amoroso: lágrimas, ligações para os amigos, tentativas de entender o episódio na terapeuta, saudades dos detalhes que envolveram a relação, necessidade de purgar a dor sozinha e uso da raiva em projeto pessoal para sobreviver emocionalmente. Ela inclusive esquece que já passou por isso, que as emoções aflitivas são impermanentes, que enquanto estivermos no capitalismo será assim, que o mercado é injusto e não tem vaga para todo mundo. Passa o dia seguinte de pijama escrevendo até as oito da noite. O pai não entende que quem escreve não tem um dom, tem uma sina e escreve para não morrer, pois é uma avalanche interna de palavras, sensações, sonhos, conexões, lembranças... Amores.
Acaba de parir mais um: projeto pessoal antigo, empoeirado na prateleira de sonhos, estimulada pela terapeuta e pelo que ouviu no término da parceria que rendeu a dor de amor corporativa. O amigo tem razão: mesmo se ele não ganhar dinheiro com isso, continuará desenhando. Mesmo que ela não seja remunerada, as palavras teimam em sair, como cavalos selvagens precisando ganhar o mundo. Nada impede de dar continuidade aos textos mais focados em sua paixão que rendeu até a segunda faculdade, como idealizou lá longe, na pré infância de seus sonhos inconfessos.

A Três


Quando se conheceram ficou meio com aquela sensação juvenil de vertigem convulsiva. Conversaram, gostou do papo, mas o que mais justificava a fixação inicial era o brilho dos olhos. De resto tinha aquela morenice que sempre a atraiu. E os cabelos grisalhos, bem estes eram uma novidade em seu repertório. Gozado que o que ele contava ia e vinha, com uma trilha sonora, quase como nos filmes “água com açúcar” dos quais se dizia tão avessa. A risada, o colega tinha razão, era a mais bela curva do ser humano. Mas enfim... Num ambiente tão pouco propício... O sanatório daquela agência, que parecia virada do avesso. De repente podia considerar a filosofia de vida da vizinha, de a cada serviço conquistar mais um, pois era uma “vingança legítima contra o capitalismo”. Na primeira virada de madrugada em que ele se safou e juraram por rebeldia de pião recalcado que deixariam as mais pesadas tarefas para o retorno dele, desejando “de lambuja“ uma hérnia de disco, deixou escapar:
-Eu me pré disponho a fazer massagem nele.
O que já seria suficiente para movimentar a “rádio pião” interna. Mas um amargurado de plantão já cortou “seu barato”:
- Ele namora. Um cara.
E quem disse que isso era empecilho? Ela sempre fantasiou perverter um gay. Como ainda não tinha acontecido, não sabia por onde começar. Mas já estava naquela fase em que seguia a música “deixa estar que o que for para ser vigora”, sinal de que sua ansiedade patológica estava a caminho da cura. Riu sozinha quando percebeu que embora ainda roesse as unhas, já estava praticando o que recomendava o colega “dá o melhor de si e deixa fazer a curva do rio. Se tiver que retornar, virá”.
Noutra madrugada virando trabalho em cima da hora, foi ajudá-lo com não sei o que, disseram que a sala em que ele apagava incêndio estava com serviço saindo pelo ladrão, fez de conta que não tinha o que fazer e passou por lá como quem não quer nada. Fazendo o trabalho mais operacional do mundo, ouviu dele:
- Seu cheiro é bom.
Ficou sem graça e feliz:
- É uma mistura de creme, desodorante e perfume, pois como diz a revista TPM: queremos nos livrar dos nossos cheiros naturais.
Mas era tanto o que por em dia e tanto cansaço para se livrarem que não passou disso.
Meses depois foi preciso viajarem todos juntos a negócios. Apesar de toda dor de cabeça dos primeiros dias e da maioria das horas, arrumaram tempo para tomar um pouco de sol, “aos 45 do segundo tempo”. Vendo que ela se contorcia para passar o protetor solar, ele veio se oferecer para besuntar as costas dela, que brincou:
- Acho que esse não tem o perfume que tinha reparado aquele dia.
- O gostoso é o seu cheiro mesmo, não tem perfume artificial nele.
Ficou meio orgulhosa e sem saber como reagir. Tanto era verdade o que ele falou que antes de apertar o creme e deslizar na pele dela, ficou cheirando, a ponta do nariz dele brincando com os pelos claros dela, que se arrepiava e pedia que o momento não acabasse, nem chegasse mais ninguém do trabalho para cortar o clima.
Pensou cedo demais e os principais fomentadores da rádio pião quase que "brotam do chão". Os dois vão esfriar os ânimos na água. E se olham como quem tem a dizer, mas acredita que as palavras para a ocasião ainda não constam em nenhum vocabulário.
Numa lavagem de pratos ele encontrou com ela esquentando comida na pequena copa do trabalho e foi pego pelo estômago:
- Sua comida também cheira bem.
-Quer que vá cozinhar para vocês? – desta vez foi rápida no gatilho.
-Pode ser. Mas não somos naturebas como você.
- Olha que converto qualquer um com minhas criações heim?
- Pago para ver.
- E qual a moeda desta aposta?
-Vamos ter que reinventar a roda amorosa.
- Só se a transformarmos em triângulo.
- Quando?
- Sábado à noite.
- Às oito.
- Na casa de vocês ou na minha?
- Na nossa. Preferimos terreno conhecido onde sabemos como pisar.
- Sem problemas. Me manda o endereço.
- Passo sim.
Desta vez, milagrosamente não apareceram os urubus de plantão da agência.
A aposta aconteceu ainda no início da semana, que demorou a passar. Mas eles foram fazendo com que ela corresse mais rápido alongando quando as mãos se encontravam manipulando brinde, fazendo questão de se encostar para cruzar a agência e trombar propositadamente com o que estava sentado só para pedir desculpas e deslizar por um ombro exposto. Alguma coisa impalpável fervia a olhos nus, mas a rádio pião ainda não tinha evidências e até prova em contrário, ele era homo convicto.
Na grande noite, ele nutria expectativas maiores que o companheiro, ainda não iniciado no universo feminino e a princípio nem interessado em adentrar nesta saara. Mas ela foi chegando com seus sabores leves, super temperados e inundando a casa de aromas, que foram provocando roncos nos estômagos ansiosos deles, que raramente saíam do lugar comum carnívoro. Algumas viagens pelas cores de ervas exóticas depois, se deliciaram os três com uma versão vegana da bacalhoada e como os dois comeram gemendo, ao término da refeição ela ainda foi para a cozinha, no que parecia uma iniciativa de lavar a louça, quando justamente o que não tinha interesse inicial na aposta foi impedi-la.
Entre esbarros, sem gracice e olhares furtivos, ficaram meio sem jeito ali na cozinha americana. O que já a tocava propositadamente no serviço chegou quando o silêncio inundava o ambiente e levantou o cabelo dela num rabo de cavalo. Quem nunca tinha pensado em interagir com uma mulher de repente se viu ligeiramente atordoado com aqueles fios que teimavam em fugir do elástico e - quem diria - com o suor do trabalho braçal de cozinhar escorrendo na nuca. De repente um cheirou – quem diria – a curva entre a axila e o braço e o aroma dela se misturava com o resto de desodorante e um pouco de suor e era estupidamente excitante. O outro se perdeu naquela estreita faixa entre o nariz e os lábios e ali se demoraram uma vida.
Ela se aturdia entre o frio na barriga e aquele torpor de começo de paixão, mas ainda teve força para fazer um carinho no final da orelha do colega de trabalho, onde começava o pescoço e brincar com a parte interna do braço do outro. E foi ali no chão de azulejos mesmo que foram fazendo o corpo de um de mapa e o do outro de universo desconhecido. Brincaram de cabra cega um no outro. Era uma viagem nova para os três e empreendê-la juntos tinha um sabor nostálgico de adolescência, que a vida era uma eterna primeira vez.
Os dedos e lábios correram lugares até então incomuns para os três: atrás do joelho, parte interna do cotovelo, lateral da barriga, comecinho do pé, canto da batata da perna... Vinham de relacionamentos muito focados no óbvio e a urgência na descoberta de outras fontes de arrepios e suspiros era tardiamente represada. Se esquadrinharam como quem descobre uma primeira vez tardia: o ménage a trois em que não aconteciam sobra de parte alguma. Os encaixes eram precisos e os gemidos provavam que o ímpar podia ser numa fração de tempo inacreditavelmente suficiente.
A exaustão foi tanta que no dia seguinte todos se atrasaram para seus plantões e a chegada dos dois juntos, de cabelos molhados e rindo até das broncas incendiou a vocação geradora de boatos interna. Agora mais que nunca criavam formas de roçar a ponta das mãos, passar a perna nas costas um do outro, o braço no cabelo, a barriga na cabeça, no escritório, na cozinha, no corredor do banheiro. Riam como se tivessem voltado aos treze anos e contavam os minutos para reencontrem a terceira ponta daquele polígono imprevisível e incendiário.

quinta-feira, 1 de novembro de 2012

Às Escuras


A foto saiu da bandeja e se revelou inteira, como quem se despe para o homem que ama. O professor se orgulhava da aluna ter aprendido tanto em tão pouco tempo:
- Quando a gente foca um ponto e deixa o resto desfocado está começando a pegar um caminho de escolher o próprio estilo. – incentivava ele.
- Sou apaixonada por preto e branco. – se animava a aluna.
- Dá para desenhar mais fotos de alguns perfis.
- Tem outro tom que é lindo...
Ela vai passando outra folha fotográfica na bandeja e a demora do produto químico reagir cria uma expectativa. Naquele breu, pouco se vêem, são os olhos que conversam entrelinhas.
Durante a fixação e revelação, ela leva um susto:
- Putz! Mergulhei o relógio da 25 de Março nos químicos... Será que sobrevive?
- Tem uns Ching Ling que são até resistentes. – torce o professor, pendurando imagens que imobilizam o olhar no varal das melhores criações.
- Esse tom dá para explorar muita coisa bacana! – quando ela tira a imagem da última bandeja, ela faz voltar no tempo.
- Sépia é um convite ao passado! – se anima ele.
Ela mesma pendura sua foto produzida no varal dos alunos.
- Você diz que a fotografia é a morte...- não entende ela.
- Ela fixa o que nunca mais conseguimos retomar. – explica ele.
- A graça é essa. – ela acredita.
O laboratório tinha tamanho suficiente para criar um clima meio claustrofóbico. Não em quem de repente se vê com outros olhos. Quando a blusa dela escorregou pelo ombro e ele foi surpreendido por umas sardas meio escondidas, pararam de esmiuçar a paixão que tinham em comum. E naquele breu convidativo, deixaram que os olhos criassem outras químicas além das que estavam nas bandejas, com cheiro mais convidativo. Ele suou frio, o que fez o óculos dele escorregar e pela primeira vez ela viu que embora o professor tivesse olhos puxados de índio, eram claros. As pupilas se conversavam e as palavras foram supérfluas. O relógio dela roçou a parte interna do braço dele, que teve coragem de permitir que a conversa invadisse aquele momento:
- Ele continua funcionando!
- A hora da aula estourou
As costas dela quase que se encaixaram na única bancada de máquinas, que naquele momento estavam emprestadas e foi natural se tornar convidativa. Ela roçou a perna que escapava da mini saia nos pelos dele que fugiam da bermuda. Seu toque baixou o resto de blusa que ainda teimava em esconder o resto das sardas e foi encontrando o caminho que a deixava meio sem ar. As mãos dela se esconderam entre a as costas e a blusa dele. Descobriram um encaixe em que quase acendiam o laboratório, ainda na penumbra. Parte da roupa que os separava foi atirada quase longe, que o espaço não era para tanto. Se amaram com uma ânsia que precisava ser sorvida em grandes goles, duma sede adiada há tempo demais. Quando a mão dele se esticou, alcançou a única máquina ainda não retirada do laboratório da faculdade e ela ousou acender a luz.
Seus cliques a buscaram como quem tateia o outro com a lente. Ela se abria como quem acorda e se espreguiça com todo o tempo do mundo. O amor é um jogo de pique e pega. Ela ensaiava uma timidez que ele não conhecia, mas acabava encontrando um espaço para registrar a risada que quebra a sem gracice. Ele não conhecia os caminhos que levavam à essência que o obturador quer registrar, mas as sardas eram uma pista que ele se encantava em explorar.
A máquina que uniu este vai e vem era digital. A maioria que fazia o curso lá gostava de brincar com as possibilidades esquecidas das câmeras tradicionais. Conseguiram ver as fotos na urgência de uma paixão que se recusa a esperar. Ela riu:
- Uma prima diz que queria ficar com um fotógrafo só para ele fazer poesia para sempre com a lente.
- Se ela viesse aqui no mesmo horário e montássemos praticamente o mesmo cenário, mesmo que ela se parecesse com você, as imagens nunca sairiam nem de perto parecidas.
Ele arrumou o óculos.
- Entendeu “garotinha ruiva” porque a fotografia é a morte?

Cabra cega


- Fiquem de costas um para o outro! – pedia o diretor.
Como criar entre dois estranhos o clima de personagens que se amavam, mas não podiam concretizar aquela paixão? Era o caminho que tateavam juntos.
Ela não o achava nem atraente, nem asqueroso. Estava numa zona tão neutra que nem sabia por onde iniciar este trabalho cênico, então se entregou às orientações da direção. É que quando tocaram suas costas, um lastro de memória olfativa disparou as mais antigas memórias – dizem que aquelas que vêm pelo nariz são as mais rápidas. Mas nem era cheiro de perfume, era dele mesmo, que depois daquele aquecimento demorado não tinha banho que resistia.
Ele achou que ela lembrava uma prima com quem teve problemas a vida inteira e também não tinha ideia de por onde puxar o sentimento que a peça cobrava. Sua única escapatória foi confiar na direção, pois por conta do que já tinha estudado e experienciado não estava conseguindo. Encostando às costas dela, sentiu que os suores teimavam em se misturar e aquilo disparou sensações que ele não lembrava ter sentido. Meio incômodas e ao mesmo tempo irresistíveis.
Parecia que passaram horas assim. E foram poucos minutos. Um enfaixou os olhos do outro, acendeu incenso, deu comida na boca e também se deixou tapar os olhos. Se tatearam. Por um tempo infindável. Teve gente no teatro que não tinha a ver com o processo e foi comer, tomar café, ao banheiro. Eles não. Perderam a pressa. O diretor colocou músicas que eram um golpe baixo. E o tempo parou. Onde tinha ido parar a cisma que um tinha com o outro? Sabe Deus.
Um alcançou o incenso. E brincou de quase queimar o outro, que encontrou a comida, ensaiou dar na boca e enrolou para realmente por na língua. Encontraram um ritmo e dançaram como se os outros não existissem. Criaram um novo movimento, sem receio do julgamento alheio, se aquilo tinha sentido ou não. Deitaram no chão. As mãos se encontraram. Deram choque. Fugiram. Se reencontraram. Quase saíram faíscas. Se agacharam. Se trombaram. Riram como crianças. Desenharam um no outro formas que ficaram esquecidas na infância, como quem reaprende que todo mundo desenha, só é reprimido. E o dedo pode repentinamente virar um pincel.
Brincaram, como bailarinos, de ocupar plano médio sem se ver. Mas às vezes se cruzavam. E deixavam atiçar a imaginação de que estavam iluminando o espaço, mesmo com luzes apagadas. Gostavam de acreditar que suas energias tinham essa capacidade. E cansaram. E se apoiaram. E caíram deitados, loucos para experimentar os textos em ensaios. As falas saíram urgentes, viscerais, orgânicas. Não viram o tempo passar. Não lembraram de tirar as faixas dos olhos. Para o diretor, foi fácil deixar o processo fluir. Tinham encontrado o caminho, depois de tanto estranhamento
E meses depois levaram aquela entrega para o palco. E sentiam o inesperado desejo brotando e ouviam vagamente o diretor pedindo que não baixassem a guarda, que aquela vontade tornava a ficção mais real. E mais e mais gente vinha vê-los. No início, claro, parentes, amigos, vizinhos, colegas, familiares. Depois, os olhares que “de vez em nunca” distinguiam na platéia eram estranhos. E aí sim, davam toda entrega do mundo, como quem não se constrange de ser reconhecido embaixo de tanta maquiagem, luz, figurino, acessório de cena.
E contavam os dias para a temporada acabar. Como a maioria dos atores que conheciam, trocavam um na frente do outro. Mas ao contrário dos colegas de profissão que encenavam histórias que mexiam menos com o que não conseguiam nomear, mas sentiam brotar dos poros, dos cabelos, dos olhos, da boca, do nariz... Se olhavam diferente entre uma mudança de figurino e outra. Juravam que de luzes apagadas fariam reacender toda a coxia. Lamentavam que houvesse pouca troca de figurino.
Ao contrário de outros trabalhos, contaram as apresentações para a temporada acabar. Se olhavam meio de esquiva quando se trocavam no finzinho de cada noite. Pela primeira vez, torciam para não prorrogar. Adoravam que o teatro fosse pequeno, nem evitavam se roçar nas entradas e saídas das cenas. Riam como crianças encantadas no jardim da infância quando os olhares se cruzavam. Mas com a memória ao jogo cênico que mais funcionou, adoravam brincar de cabra cega antes de se apresentar.
Na última noite se deram como nunca aos personagens. Parecia que nem tinha platéia. Estavam mais à vontade que em suas próprias casas. Não ouviam mais a música. A luz inacreditavelmente não dava calor. E se atiçavam com o que os sentidos permitiam, já que ainda como os personagens, não podiam se encontrar. Não ouviram o que o diretor dizia. E na última fala se enfiaram no primeiro carro emprestado e correram para o lugar mais ermo que conheciam e se beberam. É que o gosto era diferente do sonhado. O que a gente imagina é melhor do que quando acontece. E se afastaram, ficando com aquele gosto meio amargo na boca.

Só sei me dar até precisar de soro

Eu só sei me dar demais
a ponto de sair sangrando
de não dar conta de enxugar o suor
das lágrimas arderem meus olhos
Eu só sei me dar demais
de abrir mão de sonhos pelo caminho
de deixar em falta quem não merece
de adiar minhas convicções
Eu só sei me dar demais
de sair endividada
de perdoar o inaceitável
de me envolver até a raiz dos cabelos
Eu só sei me dar demais
de ficar em déficit
de queimar foto
de fazer vivência
de meditar, fazer retiro
e ainda pedir segundo round
Eu só sei me dar demais
e não perder mais o momento
e empurrar o outro rumo ao seu próprio crescimento
e salvar sorrisos
Eu só sei me dar demais
e descobrir depois que também preciso receber
e virar noites por causas novas
e estudar assuntos assustadores
e mudar postura online
e aconselhar amiga a proteger o filho
Eu só sei me dar demais
e esticar o expediente
e bancar a babá
e fazer o que nunca fiz
e virar mãe no susto
Eu só sei me dar demais
e fechar os olhos pro assustador
e embrulhar pra presente meu empenho
e precisar do apoio
e me assustar com o vácuo
e acelerar o pensamento
e por os pés pelas mãos
Eu só sei me dar demais
o tanto que ninguém
nunca fez por merecer
e deixaram a balança
no negativo
Eu só sei me dar demais
até ficar com anemia
até que me esgotem em sangria
até que me contem o que não dou conta
até que me ralem no asfalto
até que me derrubem do salto
Eu só sei me dar à exaustão