sexta-feira, 2 de novembro de 2012

A Três


Quando se conheceram ficou meio com aquela sensação juvenil de vertigem convulsiva. Conversaram, gostou do papo, mas o que mais justificava a fixação inicial era o brilho dos olhos. De resto tinha aquela morenice que sempre a atraiu. E os cabelos grisalhos, bem estes eram uma novidade em seu repertório. Gozado que o que ele contava ia e vinha, com uma trilha sonora, quase como nos filmes “água com açúcar” dos quais se dizia tão avessa. A risada, o colega tinha razão, era a mais bela curva do ser humano. Mas enfim... Num ambiente tão pouco propício... O sanatório daquela agência, que parecia virada do avesso. De repente podia considerar a filosofia de vida da vizinha, de a cada serviço conquistar mais um, pois era uma “vingança legítima contra o capitalismo”. Na primeira virada de madrugada em que ele se safou e juraram por rebeldia de pião recalcado que deixariam as mais pesadas tarefas para o retorno dele, desejando “de lambuja“ uma hérnia de disco, deixou escapar:
-Eu me pré disponho a fazer massagem nele.
O que já seria suficiente para movimentar a “rádio pião” interna. Mas um amargurado de plantão já cortou “seu barato”:
- Ele namora. Um cara.
E quem disse que isso era empecilho? Ela sempre fantasiou perverter um gay. Como ainda não tinha acontecido, não sabia por onde começar. Mas já estava naquela fase em que seguia a música “deixa estar que o que for para ser vigora”, sinal de que sua ansiedade patológica estava a caminho da cura. Riu sozinha quando percebeu que embora ainda roesse as unhas, já estava praticando o que recomendava o colega “dá o melhor de si e deixa fazer a curva do rio. Se tiver que retornar, virá”.
Noutra madrugada virando trabalho em cima da hora, foi ajudá-lo com não sei o que, disseram que a sala em que ele apagava incêndio estava com serviço saindo pelo ladrão, fez de conta que não tinha o que fazer e passou por lá como quem não quer nada. Fazendo o trabalho mais operacional do mundo, ouviu dele:
- Seu cheiro é bom.
Ficou sem graça e feliz:
- É uma mistura de creme, desodorante e perfume, pois como diz a revista TPM: queremos nos livrar dos nossos cheiros naturais.
Mas era tanto o que por em dia e tanto cansaço para se livrarem que não passou disso.
Meses depois foi preciso viajarem todos juntos a negócios. Apesar de toda dor de cabeça dos primeiros dias e da maioria das horas, arrumaram tempo para tomar um pouco de sol, “aos 45 do segundo tempo”. Vendo que ela se contorcia para passar o protetor solar, ele veio se oferecer para besuntar as costas dela, que brincou:
- Acho que esse não tem o perfume que tinha reparado aquele dia.
- O gostoso é o seu cheiro mesmo, não tem perfume artificial nele.
Ficou meio orgulhosa e sem saber como reagir. Tanto era verdade o que ele falou que antes de apertar o creme e deslizar na pele dela, ficou cheirando, a ponta do nariz dele brincando com os pelos claros dela, que se arrepiava e pedia que o momento não acabasse, nem chegasse mais ninguém do trabalho para cortar o clima.
Pensou cedo demais e os principais fomentadores da rádio pião quase que "brotam do chão". Os dois vão esfriar os ânimos na água. E se olham como quem tem a dizer, mas acredita que as palavras para a ocasião ainda não constam em nenhum vocabulário.
Numa lavagem de pratos ele encontrou com ela esquentando comida na pequena copa do trabalho e foi pego pelo estômago:
- Sua comida também cheira bem.
-Quer que vá cozinhar para vocês? – desta vez foi rápida no gatilho.
-Pode ser. Mas não somos naturebas como você.
- Olha que converto qualquer um com minhas criações heim?
- Pago para ver.
- E qual a moeda desta aposta?
-Vamos ter que reinventar a roda amorosa.
- Só se a transformarmos em triângulo.
- Quando?
- Sábado à noite.
- Às oito.
- Na casa de vocês ou na minha?
- Na nossa. Preferimos terreno conhecido onde sabemos como pisar.
- Sem problemas. Me manda o endereço.
- Passo sim.
Desta vez, milagrosamente não apareceram os urubus de plantão da agência.
A aposta aconteceu ainda no início da semana, que demorou a passar. Mas eles foram fazendo com que ela corresse mais rápido alongando quando as mãos se encontravam manipulando brinde, fazendo questão de se encostar para cruzar a agência e trombar propositadamente com o que estava sentado só para pedir desculpas e deslizar por um ombro exposto. Alguma coisa impalpável fervia a olhos nus, mas a rádio pião ainda não tinha evidências e até prova em contrário, ele era homo convicto.
Na grande noite, ele nutria expectativas maiores que o companheiro, ainda não iniciado no universo feminino e a princípio nem interessado em adentrar nesta saara. Mas ela foi chegando com seus sabores leves, super temperados e inundando a casa de aromas, que foram provocando roncos nos estômagos ansiosos deles, que raramente saíam do lugar comum carnívoro. Algumas viagens pelas cores de ervas exóticas depois, se deliciaram os três com uma versão vegana da bacalhoada e como os dois comeram gemendo, ao término da refeição ela ainda foi para a cozinha, no que parecia uma iniciativa de lavar a louça, quando justamente o que não tinha interesse inicial na aposta foi impedi-la.
Entre esbarros, sem gracice e olhares furtivos, ficaram meio sem jeito ali na cozinha americana. O que já a tocava propositadamente no serviço chegou quando o silêncio inundava o ambiente e levantou o cabelo dela num rabo de cavalo. Quem nunca tinha pensado em interagir com uma mulher de repente se viu ligeiramente atordoado com aqueles fios que teimavam em fugir do elástico e - quem diria - com o suor do trabalho braçal de cozinhar escorrendo na nuca. De repente um cheirou – quem diria – a curva entre a axila e o braço e o aroma dela se misturava com o resto de desodorante e um pouco de suor e era estupidamente excitante. O outro se perdeu naquela estreita faixa entre o nariz e os lábios e ali se demoraram uma vida.
Ela se aturdia entre o frio na barriga e aquele torpor de começo de paixão, mas ainda teve força para fazer um carinho no final da orelha do colega de trabalho, onde começava o pescoço e brincar com a parte interna do braço do outro. E foi ali no chão de azulejos mesmo que foram fazendo o corpo de um de mapa e o do outro de universo desconhecido. Brincaram de cabra cega um no outro. Era uma viagem nova para os três e empreendê-la juntos tinha um sabor nostálgico de adolescência, que a vida era uma eterna primeira vez.
Os dedos e lábios correram lugares até então incomuns para os três: atrás do joelho, parte interna do cotovelo, lateral da barriga, comecinho do pé, canto da batata da perna... Vinham de relacionamentos muito focados no óbvio e a urgência na descoberta de outras fontes de arrepios e suspiros era tardiamente represada. Se esquadrinharam como quem descobre uma primeira vez tardia: o ménage a trois em que não aconteciam sobra de parte alguma. Os encaixes eram precisos e os gemidos provavam que o ímpar podia ser numa fração de tempo inacreditavelmente suficiente.
A exaustão foi tanta que no dia seguinte todos se atrasaram para seus plantões e a chegada dos dois juntos, de cabelos molhados e rindo até das broncas incendiou a vocação geradora de boatos interna. Agora mais que nunca criavam formas de roçar a ponta das mãos, passar a perna nas costas um do outro, o braço no cabelo, a barriga na cabeça, no escritório, na cozinha, no corredor do banheiro. Riam como se tivessem voltado aos treze anos e contavam os minutos para reencontrem a terceira ponta daquele polígono imprevisível e incendiário.

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